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segunda-feira, 19 de outubro de 2009

O Quinto dos Infernos: Presídios em Sergipe no Século XIX.

Por Amâncio Cardoso*



Das grades das prisões, à luz fumarenta do candeeiro suspenso por uma corda à roldana do teto, ouvia-se o respirar penível, um ressonar estertoroso, ... .


MORAIS FILHO, Alexandre José de Melo (1843-1919). O Enforcado. Festas e Tradições Populares do Brasil. Brasília: Senado Federal/Conselho Editorial, 2002. p. 269. (1ª edição provavelmente de 1895).


Há tempos que os presídios sergipanos estão na pauta de preocupação dos governos.

No Império, em 1877, um governante assim diagnosticou a cadeia e os presos de Aracaju: ‘uma atmosfera pútrida que atordoa, (...) uma cena repelente. (...) Nudez e imundície; rostos pálidos, corpos cadavéricos; desordem e confusão por toda parte. (...) Túmulo de vivos’.[1]

Não obstante esta situação, as outras cadeias públicas da província eram mais decadentes. A maioria ficava instalada em precárias casas alugadas. Ali, a fuga, a promiscuidade, a doença e a ociosidade eram patentes.

Em 1867, dentre as duas cadeias, duas casas de detenção e dezessete casas alugadas que serviam de prisão em Sergipe, a de Itabaianinha foi considerada a menos segura, dando lugar a diversas fugas, contra quatro da cadeia de Vila Nova (atual Neópolis).[2] Os presídios públicos sergipanos, àquela época, eram muito vulneráveis. Fugia-se até pelo telhado, como ocorreu na então vila de Divina Pastora.[3]

As freqüentes fugas de presos em Sergipe durante o século XIX também contavam com a conivência de policiais. Na cadeia de Aracaju, em 1882, por exemplo, três soldados do Corpo de Polícia e três da Companhia de Infantaria deixaram fugir três detentos ‘por ocasião do serviço da faxina’. Os guardas foram presos e processados, segundo relato do chefe de polícia.[4]

Quanto à promiscuidade nos cubículos, ela não era apenas física, mas também jurídica. Os sentenciados ficavam de mistura com os apenas indiciados. Além disso, em 1883, na cadeia da capital os alienados (detentos considerados sem juízo ou loucos) eram recolhidos com os outros detidos, ‘não podendo, por isso, receberem tratamento conveniente para restabelecimento da razão perturbada’; denunciou o chefe de polícia.[5] Tais recintos constituíam-se em salões onde os presos eram aglomerados ‘sem ordem nem classificação’. Dali, os detentos saíam com ‘a saúde alterada e mais pervertida a alma’; reclamou um presidente da província (hoje equivalente ao governador do Estado).[6]

A prisão também constituía um perigo à saúde pública, conforme o discurso médico-higiênico do Império. A promiscuidade e a falta de higiene seriam causas para a proliferação de miasmas (gases pútridos exalados dos corpos em decomposição, ou da transpiração, que provocariam doenças). Portanto, tais miasmas, segundo o saber médico-científico de então, corromperiam o ar das cadeias devido à emanação fétida proveniente do suor dos presos aglomerados e da imundície destes recintos.

A promiscuidade e as débeis condições de higiene das cadeias públicas no século XIX contribuíam mesmo para a insalubridade e a mortandade nas celas. Só em 1866, morreram na cadeia de São Cristóvão oito vítimas de varíola. Neste período a prisão mantinha 93 (noventa e três) detentos ‘quando bem se prestaria em 60 (sessenta)’; avalia o Chefe de Polícia.[7] Quanto às enfermidades, na cadeia de Aracaju, em 1875, os casos mais freqüentes eram de anemia, bronquite e das chamadas febres paludosas. Tais afecções evidenciam a má alimentação e precariedade de acomodação no presídio.[8]

A situação dos detentos e as instalações das cadeias em Sergipe na fase imperial eram mesmo decadentes. Em Estância, em 1855, no auge de uma epidemia de cólera, doença então sem cura efetiva que grassou pelo Brasil e atingiu terrivelmente Sergipe, os detentos se encontravam quase nus em uma meia água que lhes servia de prisão, tendo por cama o chão de terra; lastimava o delegado.[9] Já em 1879, os presos de Aracaju se achavam em ‘verdadeiro estado de nudez’, pois há três anos não se compravam suas roupas, que era obrigação do governo.[10]

Quanto à estrutura e instalações dos presídios sergipanos, os testemunhos de época são unânimes sobre a precariedade em que se encontravam. Em 1877, por exemplo, o então presidente relatou que a cadeia de Santo Amaro estava em ruínas: ‘as paredes largamente fendidas e o madeiramento do teto bastante estragado’.[11] Esta situação não era incomum no restante dos presídios.

A “Casa de Prisão” de Aracaju era considerada a melhor e maior cadeia de Sergipe. Mesmo assim, tal estabelecimento foi centro das críticas e preocupações de autoridades públicas durante todo o século XIX. Seu funcionamento foi regulamentado em 1872, mas desde 1867 os presos eram guardados no calabouço, pois sua construção iniciou-se em 1864. O desejo do poder público, pelo menos o que está registrado nos documentos oficiais, era fazer funcionar a “Casa” de acordo com um regime penitenciário, então em voga na Europa e nos Estados Unidos.

Em 1871, uma lei provincial autorizou o ensaio de um regime penitenciário na casa de detenção da capital. Portanto, era mister fazer as devidas modificações no seu projeto arquitetônico e no corpo de servidores, embora a exigüidade dos cofres públicos para tal empreitada sempre fora o mote de maior empecilho, segundo os administradores provinciais. No entanto, a partir de 1878, foram iniciadas timidamente as reformas com a instalação de enfermaria, escola, oficinas e capela.

Pelo método penitenciário, a “regeneração” do detento estaria lastreada por três bases: a instrução, o trabalho e a religião católica. A primeira traria ao encarcerado a luz da razão (função correcional); o segundo, possibilitaria a reflexão sobre o crime no silêncio do ofício e uma utilidade social (função exemplar); e a terceira, garantiria a proximidade com o “Bem” (função moralizadora). O tripé regenerador sanaria os males físico-emocionais, sociais e morais; seria uma panacéia para os presos. Esta idéia de reforma penitenciária esta sintetizada na seguinte sentença em voga na época: ‘Se o criminoso é um enfermo; a pena um remédio; o cárcere um hospital’.[12]

Com tal propósito, tentou-se implementar o método penitenciário na “Casa de Prisão” com trabalho de Aracaju, porém com escasso sucesso. Em 1883, denunciou-se que as oficinas de marceneiro e sapateiro não estavam montadas convenientemente. E, além disto, os condenados a trabalho não eram obrigados a freqüentá-las, burlando-se ‘inteiramente a distribuição e gradação da penalidade’.[13] A ideologia da valorização do trabalho servia para disciplinar o sentenciado, incutindo-lhe hábitos morigerados, de acordo com a ordem vigente.

A “Casa de Prisão” de Aracaju possuía dois pavimentos. Hoje, ela corresponde ao Palácio Serigy, onde funciona a sede da Secretaria de Estado da Saúde, na praça General Valadão, no “Centro Histórico” da cidade. É um edifício com construção e arquitetura arrojadas para os padrões da fase provincial. Nele, havia 50 celas (24 no piso superior e 26 no inferior). Destas, 03 eram ocupadas com aulas, e 07 com oficinas de marceneiro e de sapateiro. Nas 40 celas restantes estavam reclusos, em janeiro de 1883, 264 (duzentos e sessenta e quatro) presos, separados por sexo. Uma média de sete reclusos por cela, chegando a dez ou mais. ‘Número este que tende a aumentar em razão de serem enviados para esta Capital criminosos de todos os pontos da Província’; alertava o chefe de polícia, preocupado com a ‘comodidade e segurança necessárias a tão considerável número de presos’.[14] A comodidade dos presos era outro item problemático no antigo presídio.

Quanto ao abastecimento de água da “Casa de Prisão”, ele era feito por pessoa contratada. A água era retirada de uma fonte localizada numa chácara, em certa distância da prisão. Este serviço era executado anteriormente por reclusos escoltados.

Sobre o fornecimento de roupas e alimentação dos presos, eram recorrentes as reclamações. Não havia regularidade de entrega das vestes e a diária para alimentação era considerada insuficiente. Com esta diária, os familiares se encarregavam de levar a parca comida preparada fora da prisão. O chefe de polícia, em 1883, atribuía à má alimentação dos detentos ‘o fato de constantemente haverem doentes na enfermaria’. E mais, a entrada e saída de portadores de alimentos concorreriam para a introdução nas celas de bebidas alcoólicas e armas, além da reprodução de ‘cenas imorais’ devido à presença de mulheres no estabelecimento; denuncia a mesma autoridade policial.[15] Quatro meses depois, o fornecimento de comida para os presos fora estabelecido através de contrato com terceiros e preparada na cozinha do presídio. Com isto, suspendeu-se ‘o comércio inconveniente de mulheres e meninos que freqüentavam o edifício causando alaridos e perturbando o trabalho das oficinas’.[16]

O sistema penitenciário traduzia valores disseminados pela elite intelectual. Nos discursos veiculados pelas autoridades públicas e pela igreja católica no século XIX, tais ideais estavam alicerçados na “valorização do trabalho”.[17] Esta idéia parecia paradoxal numa sociedade marcada pela ordem escravocrata em que o trabalho era associado a uma imagem ignóbil. No entanto, o poder público uniu-se à igreja católica para propagar a valorização do trabalho livre devido, por um lado, à escassez de mão-de-obra escrava com a proibição do tráfico de africanos desde 1850, e por outro, à mitigação da escravidão com a sanção de leis abolicionistas na segunda metade do século XIX.

Ao valorizar o trabalho livre, defendia-se o recrutamento de “vadios”, “mendigos”,“vagabundos”, “ociosos” e “indolentes”, conforme vocabulário utilizado pelo Arcebispo Primaz do Brasil,
D. Romualdo Antônio de Seixas - Marquês de Santa Cruz (1784-1860), em carta pastoral enviada a todas as paróquias e escrita a pedido de Cunha Galvão, então presidente de Sergipe em 1860. A valorização do trabalho livre supriria uma proclamada carência de mão-de-obra e disciplinaria espíritos “rebeldes” que não se sujeitavam à obediência e à labuta dirigida por uma elite senhorial, cuja mentalidade se coadunava com o regime servil. Os chamados ociosos talvez percebessem no projeto de valorização do trabalho livre, propugnado pelos “estratos sociais superiores”, uma forma de perpetuar, na população livre, características semelhantes à relação entre o senhor e o escravo. Desta forma, os “vadios” não vislumbravam o compromisso das elites na melhoria das condições de vida da chamada ‘porção inútil da população’.[18] Era essa “casta de gente miúda” que regurgitava nas cadeias públicas sergipenses do século XIX.

A antiga “Casa de Prisão” da capital, localizada na atual praça General Valadão, foi extinta nas primeiras décadas do século XX. Em seu lugar foi construída no governo de Graccho Cardoso (1922-1926) a Penitenciária de Aracaju, no então afastado Bairro América. À época, o presídio era dotado com o que havia de mais moderno quanto ao regime penitenciário.

Hoje, como se sabe, a situação de precariedade desta Casa de Detenção está em conformidade com a crise do sistema carcerário brasileiro. Pois para os detentos e a população, que a mantém com pesados impostos, a penitenciária da capital continua sendo um estorvo. Portanto, o testemunho que diagnosticou a antiga Cadeia de Aracaju no século XIX parece atual: desordem e confusão por toda parte. Um verdadeiro quinto dos infernos.

* Mestre em História Social pela Unicamp e professor da Escola Técnica Federal de Sergipe.E-mail: acneto@infonet.com.br


[1] FONTES, José Martins. Relatório... 06 de março de 1877. Aracaju: Typ. do Jornal do Aracaju, 1877. p. 15. Todos os relatórios e falas de presidente deste artigo foram pesquisados nos CD-ROM n. 1 e 2 (pastas 7 a 13) do Sistema Informatizado de Memória Histórica-SIMH, editados pela Secretaria de Estado de Cultura.[2] ASSIS, Antero Cícero d’. Relatório da Secretaria de Polícia, em 10 de Jan. de 1867. In SILVA MORAES, José Pereira da. Relatório..., 21 de janeiro de 1867. Aracaju: Typ. Jornal de Sergipe, 1867. p. 9-10.[3] JACOBINA, Francisco Justiniano César. Relatório da Secretaria de Polícia. In NASCIMENTO, José Ayres do. Falla com que o presidente abriu a 2ª Sessão da 24ª Legislatura... . Aracaju: Typ. do Jornal de Sergipe, 1883. p. 02.[4] Ibidem, p. 01-02.[5] JACOBINA, Francisco Justiniano César. Relatório da Secretaria de Polícia. In NASCIMENTO, José Ayres do. Falla com que abriu a 2ª Sessão da 24ª Legislatura... . Aracaju: Typ. do Jornal de Sergipe, 1883. p. 17.[6] SILVA, Cincinato Pinto da. Falla com que foi aberta a 2ª Sessão da 14ª Legislatura... . Aracaju: Typ. Provincial, 1867. p. 46.[7] ASSIS, Antero Cícero d’. Relatório da Secretaria de Polícia, em 10 de Jan. de 1867. In SILVA MORAES, José Pereira da. Relatório. 21 de janeiro de 1867. Aracaju: Typ. Jornal de Sergipe, 1867. p. 9-10.[8] MIRANDA, Antônio dos Passos. Relatório... , 1º de março de 1875. Aracaju: Typ. do Jornal do Aracaju, 1875. p. 14.[9] [Ofício do delegado Urbano Joaquim Soledade ao chefe de polícia, Frederico Augusto Xavier de Brito. Estância, 11 de novembro de 1855]. Ms.-APES, fundo SP1, v. 351.[10] LIMA, Raymundo Bráulio Pires. Relatório com que o 1º vice-presidente abriu a 2ª Sessão da 22ª Legislatura... . Aracaju: Typ. do Jornal de Sergipe, 1879. p. 06.[11] FONTES, José Martins. Relatório... 06 de março de 1877. Aracaju: Typ. do Jornal do Aracaju, 1877. p. 14.[12] SANTOS, Theophilo Fernandes dos. Relatório com que o presidente abriu a 1ª Sessão da 23ª Legislatura... Aracaju: Typ. do Jornal de Sergipe, 1880. p. 08.[13] JACOBINA, Francisco Justiniano César. Relatório da Secretaria de Polícia. In NASCIMENTO, José Ayres do. Falla com que o presidente abriu a 2ª Sessão da 24ª Legislatura... . Aracaju: Typ. do Jornal de Sergipe, 1883. p. 13.[14] Idem ibidem.[15] Ibidem, p. 14-16.[16] BARRETO, Francisco de Gouvêa Cunha. Falla com que o presidente abriu a 1ª Sessão da 25ª Legislatura... . Aracaju: Typ. do Jornal de Sergipe, 1884. p. 09.[17] [CARTA pastoral do Arcebispo Marquês de Santa Cruz. Bahia, 20 de maio de 1860]. In GALVÃO, Manoel da Cunha. Relatório com que foi entregue a província..., 15 de agosto de 1860. Sergipe: Typ. Provincial, 1860. p. 07-10.[18] GALVÃO, Manoel da Cunha. Relatório com que foi entregue a província..., 15 de agosto de 1860. Sergipe: Typ. Provincial, 1860. p. 07.

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