Pesquisar este blog

quinta-feira, 17 de março de 2011

O Brasão de Aracaju: um símbolo da capital


*Amâncio Cardoso

Aracaju tem um símbolo oficial de identidade, um documento que a especifica diante das demais capitais. Falo do Brasão de Armas: conjunto de peças, figuras e ornatos dispostos no campo de um escudo ou fora dele, representando as armas de uma nação, soberano, família, corporação ou cidade. O Brasão de Aracaju foi criado pela lei nº 6, de 27 de janeiro de 1955, no governo do prefeito Jorge Campos Maynard, entre 1952 e1955.

A fatura do brasão de nossa capital, assim como outro qualquer, deve obedecer às normas da Heráldica (arte e ciência que trata do estudo dos brasões e de suas regras de confecção), também conhecida por Armaria ou Brasonaria.

Decifremos, assim, conforme a heráldica, o símbolo da capital sergipana.

O brasão de armas de Aracaju é composto por: 1- Escudo esquartelado (dividido em quatro partes). 2- Tenentes - figuras de cavalos marinhos que seguram o escudo à destra (direita) e à sinistra (esquerda), assentados num listel -. 3- Insígnia - coroa mural com cinco torres. 4- Divisa (frase breve que se inscreve na parte inferior do escudo) em latim num listel (faixa) azul.

Não identificamos o autor de nosso brasão. Sabemos, porém, que ele foi desenhado pelo artista plástico Florival Santos (1907-1997), a quem a memória sergipana atribui a suposta autoria de nossa peça heráldica. No entanto, num brasão de armas a autoria é definida apenas pela sua descrição escrita e não pela arte de brasonar (ato de desenhar brasões), que obedece a uma linguagem com regras próprias que remontam ao século XIII europeu.

Assim como na arte de desenhar, a descrição escrita de um brasão requer respeito às regras tradicionais da heráldica. Dessa forma, a primeira coisa a ser descrita num escudo são seus metais e esmaltes (cores). No Brasão de Aracaju, temos no escudo o dourado no campo ou quartel superior esquerdo e inferior direito; e azul no campo superior direito e inferior esquerdo. Nosso escudo tem ainda uma orla (borda) de prata.

A prata (2º metal na heráldica, representado pela cor branca) exprime virgindade, inocência e pureza. Isto condizia com a então jovem cidade de cem anos (1955) que ainda vivenciava sua puberdade histórica. Quanto ao dourado (o ouro é o 1º metal heráldico) significa a nobreza, a constância e o poder. Com relação à cor azul, ela expressa na brasonaria valores da virtude, glória e dignidade. Ambas as cores, dourada e azul, apropriadas desse modo a uma sede municipal e capital de estado que tem como raio de ação e influência diversos territórios.

Ainda sobre nosso escudo, parece haver um grave equívoco sobre sua forma. Segundo a Lei nº 06 de 1955, que instituiu nosso brasão, ela reza que o escudo é de formato português (retangular com a parte inferior arredondada). Contudo, o escudo do Brasão de Aracaju foi desenhado ao modo samnítico (dos samnitas, antigo povo montanhês da região onde hoje está a Itália e, entre os antigos romanos, designação comum a gladiadores que usavam um grande escudo). O escudo samnítico (sanítico) ou francês moderno é também retangular, porém tem um bico regular à ponta e ângulos inferiores curvilíneos, como está em nosso brasão .

Desse modo, é imprescindível uma providência imediata das autoridades municipais para promover uma possível correção em nosso símbolo, sustentada em pesquisas heráldicas. Pois, caso esta observação esteja correta, isto significaria que Aracaju foi colonizada por franceses e não por portugueses, distorcendo assim nossa identidade e realidade histórica. Tal providência sanaria um equívoco de várias décadas, a exemplo do que ocorreu há algum tempo com a cidade de Santos-SP, cujo erro heráldico foi corrigido após oitenta e quatro (84) anos de criação do seu brasão.

Decifremos agora as figuras que compõem o escudo. No quartel dourado superior esquerdo, encontra-se uma cruz pintada de vermelho. A cruz significaria a religiosidade oficial da urbe aracajuana, representada pela Igreja Católica. Já a cor vermelha indica, na armaria, a intrepidez bélica, o domínio frente ao inimigo. Isto é pertinente com o contexto histórico de Aracaju de 1955, quando o clero católico ainda tentava destituir os leigos de seu capital religioso e combater outras instituições ao implementar estratégias da política de “romanização” (moral ortodoxa empreendida por parcela da elite eclesiástica em obediência às diretrizes da Cúria romana, seguindo determinações do Concílio de Trento de 1545-1563) .

Neste sentido, com a criação da Diocese de Aracaju em 1910, formou-se uma verdadeira cruzada de salvação contra outras doutrinas de caráter religioso-filosófico como o Protestantismo, a Maçonaria e o Espiritismo. A campanha cruzadística católica também apontava como inimigas as idéias liberais, associadas ao mundanismo e às “ciências atéias”, sobretudo o Positivismo. Toda esta ação beligerante está sintetizada, por exemplo, num periódico católico publicado em Aracaju durante várias décadas do século XX, cujo título é eloqüente: A Cruzada. Assim, a presença do sinal católico no nosso brasão sugere uma imbricação política entre o governo das almas e o dos homens. Aliás, foi por filiar-se à Igreja Romana e à participação nas antigas Cruzadas (guerra dos cristãos contra os mouros na Idade Média) que os cavaleiros europeus adotaram a heráldica como forma de distinção nas batalhas, depois nos torneios e nos serviços por eles prestados.

Já no quartel superior direito do Brasão de Aracaju, temos a figura de um catavento e porções de sal prateadas, simbolizando o extrativismo desse mineral. Em tempos idos, a capital sergipana já produziu este importante condimento da cozinha universal. Nossa toponímia, inclusive, documenta este fato, pois é o rio do Sal - afluente do Sergipe - que separa o município de Aracaju do de Nossa Senhora do Socorro, antiga região salineira na zona Aracaju.

No quartel inferior esquerdo do nosso brasão, vê-se a imagem de um coqueiro prateado. Ele simboliza outro setor de nossa economia. A cultura do coco é uma das mais tradicionais de Sergipe e, particularmente, de Aracaju. Nossa capital produzia, na época da criação do seu brasão, cerca de cinco milhões e trezentos mil (5.300.000) cocos por ano. Segundo censo de 2003, a capital contribui com uma produção em torno de três milhões (3.000.000) de frutos anuais.

Esta considerável diminuição se deve, certamente, entre outros fatores, ao avanço urbanístico sobre áreas agrícolas. Tanto no que diz respeito à ação do Estado, através da construção de grandes conjuntos habitacionais, implicando na formação de um espaço metropolitano ; quanto à ação impulsionada pelos governos municipal e federal, concretizado no PAR (Programa de Arrendamento Residencial) e pela iniciativa privada, com empreendimentos imobiliários na zona sul de Aracaju, ou seja, na região da Farolândia, Atalaia, Aruana, Robalo, Matapoã e Mosqueiro.

Olhando para o quartel inferior direito do Brasão de Aracaju, vemos uma roda dentada (engrenagem) com sete raios e de cor vermelha. A roda, segundo as normas da Heráldica, representa fortuna e mutabilidade.

No caso de Aracaju de 1955, isto significaria que seu destino (fortuna) estava reservado no investimento do trabalho fabril ou industrial; simbolizado pela roda dentada. Ou seja, a capacidade de mudança (mutabilidade) de uma economia hegemonicamente agrícola para uma industrial estava nos planos das autoridades à época. Neste período, o Brasil vivenciava um momento de inversão das importações, sobretudo na Era Vargas (1930-1954), quando o Estado atuou intensamente com medidas protecionistas à indústria.

Quanto à Aracaju, as primeiras indústrias têxteis se instalaram no início do século XX, no bairro Industrial. Fortalecia-se, dessa maneira, a participação deste setor na economia do município, ao mesmo tempo em que aumentava a organização dos trabalhadores com a fundação, por exemplo, do Centro Operário Sergipano, em 1910. Após a Revolução de 1930, no Brasil e em Sergipe, os trabalhadores organizaram-se em sindicatos respaldados pela Interventoria (governo assumido por representante do presidente da República). Além disso, houve o crescimento de uma imprensa operária local com a publicação, entre outros, do jornal A Voz Operária (1932-33), Tribuna Proletária (1932) e O Proletário (1933-34). Aliado a isto, intensificaram-se manifestações reivindicatórias como a primeira greve geral de Aracaju, ocorrida em abril de 1935.

Quanto à cor vermelha da roda dentada no brasão de nossa capital, ela significa valor e magnanimidade. Atributos que o trabalho ganhou após a hegemonia da ideologia liberal-burguesa a partir do século XVIII no ocidente.

Saindo do escudo, decifremos os outros elementos do Brasão de Aracaju. Acima do escudo, está uma coroa mural dourada com cinco torres. Na brasonaria, esta insígnia representa a cidade, simbolizada pelos muros que a cercavam na antiguidade e no medievo europeus. Com relação à Aracaju, além de cidade, ela representa uma capital, o que lhe confere soberania e nobreza, qualidades simbólicas da coroa na linguagem heráldica.

Quanto aos tenentes, figurados por dois cavalos marinhos dourados à direita e à esquerda do escudo, eles representam, conforme a lei de criação do nosso brasão, o porto fluvial. Na linguagem heráldica, o cavalo marinho é chamado de hipocampo (hippocampus antiquorum é seu nome científico). Ele deve ser representado na armaria de cabeça para cima, como está em nosso brasão, e simboliza a empresa marítima.

Neste caso, é conveniente esta representação para Aracaju, cidade litorânea. Afinal, a empresa marítima está na origem que justificou seu nascedouro. Em 17 de março de 1855, Inácio Barbosa (1823-1855), presidente fundador, alegara em seu relato à Assembléia Legislativa que a nova capital teria melhores condições de navegabilidade do que a colonial São Cristóvão, que se localiza “no fundo do rio Paramopama com dependências de maré”. Aracaju, dessa forma, garantiria o crescimento do comércio marítimo na então província.

Por fim, outro elemento que compõe o Brasão de Aracaju é a Divisa de ouro em latim num listel azul. Nele, se lê PAX ET LABOR. A paz e o trabalho se uniriam para expressar a boa fortuna da nova capital. Simbolizariam, ainda, a aventada cordialidade e laboriosidade dos aracajuanos. No entanto, a disciplina e o pacifismo da classe laboriosa nem sempre corresponderam à realidade histórica, como vimos acima. As tensões entre capital e trabalho não se verificavam como raridades, em virtude do aumento do nível de organização e reivindicação crescentes dos operários da capital em meados do século XX.

Porém, as autoridades públicas e a elite política municipal se confundiam com as classes proprietárias, cujos ideais apontavam para um trabalhador urbano disciplinado e, por conseguinte, pacífico. Assim, compreende-se a presença marcante desta frase na divisa do nosso símbolo oficial, em que paz e trabalho estão conciliados.

Como vimos, um brasão pode ser fonte preciosa para conhecermos a História através das simbologias heráldicas e para entender a construção de nossa identidade. Muito embora o Brasão de Aracaju seja um documento histórico e, portanto, datado, ele ainda nos representa, nos identifica enquanto cidadãos de uma capital que merece nossos parabéns.

* Historiador, professor do IFS e sócio do IHGS. E-mail: acneto@infonet.com.br

Notas:

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda (org.). Novo dicionário da língua portuguesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 283.

ALENCAR FILHO. Aracaju etc. e tal. Aracaju: Desacato, 1980. p. 71-72.

MOYA, Salvador de. Biblioteca Genealógica Latina: simbologia heráldica. São Paulo: Instituto Genealógico Brasileiro, 1961. p. 34 e passim.

LUZ, Milton. A História dos símbolos nacionais: a bandeira, o brasão, o selo e o hino. Brasília: Senado Federal, 1999. p. 73 e 149.

NOVO MILÊNIO. Histórias e lendas de Santos: um novo brasão na terra dos bastardos. In: . Acesso: 12 de março de 2005.

ABREU, Martha. Romanização. In: VAINFAS, Ronaldo (org.). Dicionário do Brasil imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. p. 660-661.

ANDRADE JÚNIOR, Péricles Morais de. Sob o olhar diligente do pastor: a igreja católica em Sergipe (1831-1926). São Cristóvão/SE: UFS/NPPCS, 2000. (Dissertação de mestrado em Ciências Sociais).

IBGE. Censos Demográficos e Econômicos: Estado de Sergipe. Rio de Janeiro, 1956. p. 160. (Série Regional, v. xix). IBGE. Produção Agrícola Municipal: Sergipe, 2003. p. 24.

FRANÇA, Vera Lúcia Alves. Aracaju: Estado e metropolização. São Cristóvão/SE: Editora UFS; Aracaju: Fundação Oviêdo Teixeira, 1999. p. 105-121.

BUENO, Eduardo. Brasil uma História. São Paulo: Ática, 2002. p. 341.

DANTAS, Ibarê. História de Sergipe: República (1889-2000). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004. p. 102.

ROMÃO, Frederico Lisboa. Na Trama da História: o movimento operário de Sergipe (1871 a 1935). Aracaju: J. Andrade, 2000. p. 135 e passim.

SMITH, Adam. Investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984. p. 7-205.

MOYA, Salvador de. Biblioteca Genealógica Latina: simbologia heráldica. São Paulo: Instituto Genealógico Brasileiro, 1961. p. 85-86.

Idem, p. 67 e 165.

BARBOSA, Inácio Joaquim. Relatório apresentado à Assembléia Provincial. Sergipe: Typografia Provincial, 1855, p. 03.

SOUZA, Antônio Lindvaldo de. Disciplina e resistência: cotidiano dos operários têxteis em Aracaju (1910-1930). Aracaju, UFS. Monografia de bacharelado em História, 1991.

3 comentários:

AS MAIS LIDAS...